Análise: “A Menina do Outro Lado” – Nagabe

Olá, meu nome é Raisa, tenho 23 anos e curso Ciências Sociais. Serei a nova colaboradora do Ilustração Livrada, escrevendo quinzenalmente para o blog. Agradeço a leitura e espero que gostem desse primeiro post – e dos próximos -. Para este primeiro post, tanto pela beleza como pela criatividade – quis trazer a resenha do mangá A Menina do Outro Lado, do escritor e ilustrador Nagabe.


O mangá é um gênero literário oriental que expandiu-se consideravelmente no ocidente; seja pelo boom midiático de obras que marcaram gerações, como por exemplo, Naruto¹ (2007 – 2017)  e Dragon Ball²; seja pelo impacto recente de animações bem avaliadas pela crítica e pelo público, cito Beastars (2019) e Kimetsu no Yaiaba (2019). Datando sua origem de muitos séculos atrás, intrinsecamente ligada à própria história do Japão.  Diversas foram suas transformações até a constituição do gênero como o conhecemos hoje, contando com nomes importantes na sua consolidação do mangá moderno como Osama Tezuka, criador de Starboy e Dororo, – esta última adaptada recentemente para anime. (2019) -.  Atualmente, conta com diversas subcategorias, como o shounen, o shojo, seinen, entre outros. Tal gênero literário possui características diferentes das HQ pop (apesar de ser possível traçar comparações), devido ao desenvolvimento histórico, social, político econômico e cultural, esta forma de arte detém elementos específicos. Na obra de Nagabe vemos estilos e recursos não muito convencionais na atualidade, mesmo que ainda ecoe em sua arte detalhes mais tradicionais, como o uso de olhos arredondados na personagem Shiva mesclando-se com, por exemplo, a exacerbada coloração escura, baixa iluminação, poucos personagens por cena, propiciando clima lúdico e de permanente tensão. O mangaká tem 25 anos, é formado em Artes Visuais pela Universidade de Musashino, no Japão. Em seus traços há um tratamento refinado do suspense e do lirismo, contudo, sem amedrontar, mas propiciando a condução de uma história fluida, capturando quem lê pela densidade de detalhes, pelo jogo de sombras, pelos ângulos engenhosos e pelas quebras de expectativas da leitora ou do leitor.

A menina do outro lado, ou no seu título original Totsukuni no Shoujo, é um mangá contemporâneo, lançado em 2016 no Japão. No Brasil, veio a público pela DarkSide Books, em 2019, sendo traduzido para o português por Renata Garcia. A editora em questão se destaca na veiculação de histórias de terror, suspense e fantasia, com foco em ilustrações de alta densidade de detalhes. Após essa breve introdução do gênero literário e do autor, vamos a obra propriamente dita. 

Capa com cinta branca
Contra-capa com cinta branca

Começando pela capa da obra, há uma cinta branca adornada com contornos que nos remetem a brasões, podendo ou não se vincular a questões narrativas e de enredo do mangá, visto que Nagabe constrói um universo que nos remete a elementos da Idade Medieval, como os personagens cavaleiros. O título de autor em caixa alta, é seguido pelo título da obra em português, com destaque para a palavra do, em itálico. Destaque para o itálico da preposição, pois esse elemento visual conduz a linha da reflexão chave, mas não exclusiva da obra, ‘’quem ou o que é o Outro e de que mundo ele é’’. Logo abaixo, temos o nome da obra em original em silabário hiragana. Ainda na cinta, dessa vez, na parte que cobre a contracapa do livro, encontramos a sinopse. Tal complementação cumpre tanto o papel de orelha de livro quanto de refinamento estético.  Ao fim, em caixa alta, preto, mais espaçado e sublinhado está o nome da editora. 

Na capa dura da obra somos apresentados aos dois principais personagens da história, Shiva e Sensei. Caminham entre algumas árvores de tronco fino, esburacado e acinzentado, compondo uma floresta escura. Estabelecem entre si para quem lê, um contraste visual imediato: a menina vestida de branco e a criatura protetora em preto. Esta, que carrega na mão esquerda flores brancas, as solta levemente enquanto encadeia os passos e, na outra mão, carrega uma espécie de maleta preta. A paleta de tons escuros presente na capa intensifica o contraste visual com a cor branca, presente no cabelo e na roupa de Shiva como também no cachecol de Sensei, nas flores e nas minúcias da vestimenta do personagem. Tanto nas personagens quanto na paisagem se notam cores tendentes a opacidade e sombreamentos delicados.  Centralizado na parte inferior da capa, há o nome da editora em caixa alta, sublinhado e preenchido com letras brancas. Ao lado esquerdo, na vertical, o nome da obra em silabário hiragana. Este conjunto (título da obra em hiragana, título em português e o nome de Nagabe) são preenchidos numa tonalidade prateada clara, provocando devido ao pigmento metálico quando em contato com a luz, efeito luminoso. Nas letras em hiragana, há também um leve relevo americano    

A lombada do livro, de cima para baixo, é composta do nome da editora no mesmo formato que na capa, mas dessa vez, ao invés de horizontal, escrita na vertical. Também  na vertical, se encontra um retângulo preenchido de branco e dividido em três partes: na primeira consta o nome original da obra em hiragana, na segunda, a indicação do exemplar como primeiro volume de Nagabe em número romano preenchido de preto, e na última parte o nome do autor escrito em português na horizontal em caixa alta e fonte pequena, abaixo escrito em hiragana. Encerrando a lombada repousa ao chão uma das flores brancas carregadas por Sensei, A caveira, logo da DarkSide books, preenchida em branco e vazada nos olhos é nossa última informação. Quanto à cinta seu encaixe na lombada destaca o nome do autor em hiragana. A contracapa do mangá dá continuidade ao desenho da capa. Continuando a paisagem, três árvores emergem imponentes, por trás delas, quatro figuras vestidas de cinza marcham para algum lugar, enquanto uma criatura semelhante a Sensei utiliza qualquer manto para camuflar-se por atrás de uma das árvores e observa diretamente o leitor, simultaneamente demonstrando espreitar alguém. Uma flor branca reside na lateral esquerda e duas pétalas ao lado direito perto de um tronco de árvore encerram a ilustração.  Embaixo e alinhado na contra capa há o código de barra ao lado do selo da editora, uma caveira preenchida em branco dentro de um quadrado vazado, (este preenchido pela própria paisagem), e ao lado deste o nome da editora em caixa alta, numa tipografia semelhante à tw cent marcada em negrito e sem serifa A folha de guarda apresenta apenas duas cores (fora o detalhe da seixa, local do acabamento da capa e início da segunda capa): roxo para o plano de fundo e branco, sendo a cor dos traços na forma da flor. Seu fundo roxo mescla-se suavemente com o desenho da flor branca, (provavelmente aquela carregada por Shiva e Sensei). Do lado esquerdo da cinta está o nome de Nagabe, em hiragana e também em alfabeto romano.

Folha de guarda
Folha de rosto

O mangá é dividido em 5 capítulos, com ótimo ritmo de desenvolvimento, vamos aos poucos conhecendo melhor Shiva e Sensei, os personagens principais da trama. Ao passo que responde parcialmente algumas perguntas – intenção proposital, até por este ser o primeiro volume da série -, Nagabe aprofunda o tema, complexificando os personagens existentes e trazendo outros as cenas, suscitando perguntas outras. Por ser um mangá, no que tange a cores, é trabalhado em preto e branco através do nanquim, Nagabe mescla tanto fundos brancos com fundos negros para trabalhar o desenvolvimento de dramas, de verdades doloridas, de momentos de tensão. Não se alterna o letramento dos balões, tão pouco sua forma, mas o intenso uso de onomatopeias unido a ilustração de paisagens de média escala dinamizam as cenas e possibilitam mais imersão na história. Sem cair em detalhes, são utilizados diversos ângulos ao decorrer dos quadrinhos. 

Sensei, é por várias vezes ilustrado num ângulo lateral, de modo a aparecer sua silhueta preenchida de preto trabalhada em contornos brancos, compondo uma sensação visual que ajuda a demarcar e construir a diferença entre os dois personagens: uma criança humana, advinda de um lugar ainda desconhecido, uma criatura esteticamente diferente dos humanos, mas agindo como tal. Mais que isso: configurado no papel social de adulto responsável pela criança, sua estética e seus atos se opõem, deixando para a leitora/leitor esse nó indissolúvel da estética inumana/ações humanas. Num mundo dividido, porém interdependente (e segregado espacialmente), habitam os ‘’moradores de dentro’’ e os ‘’moradores de fora’’, estes últimos, amaldiçoados e caçados pelos primeiros. Subvertendo as normas sociais responsáveis por ordenar tal mundo, os personagens convivem em harmonia, contudo, sem poder encostar um no outro, caso contrário Shiva seria amaldiçoada pela mesma maldição que fez Sensei transformar-se nessa criatura. Sem poder conceber a possibilidade de existência de dois diferentes em harmonia, (além da perturbação profunda que isso desencadeia na ordem social deste universo) a prática de extermínio é adotada pelos moradores de dentro com relação aos moradores de fora, mesmo que alguns destes se questionem, são fortemente cerceados por tal norma social construída, é notório o conflito indivíduo X sociedade. Todo o desenvolvimento de Shiva e Sensei em si já é um contraponto a tal perspectiva (de segregação, de mundo dividido, de extermínio) um ser amaldiçoado cuidar de uma criança abandonada, provoca um olhar reflexivo, pois o que se mostra é justamente a humanidade presente e exercida naqueles designados como não humanos. Outro debate de plano de fundo, mas não menos importante é a construção do inimigo interno³. Esse discurso político nos remete a inúmeros cenários de agudização dos conflitos sociais, uma vez que também é um mecanismo usado em diversos momentos da história – salvaguarda as especificidades de cada evento histórico em cada país – , onde em prol de um suposto inimigo, lido como ‘ ‘subversivo ou perigoso’’ se legitima e naturaliza perseguições políticas, censuras e a própria tortura e barbárie. No Brasil, essa lógica foi empregada na Ditadura Militar (1964 – 1985), e guarda semelhanças com a atual conjuntura política.   

Nagabe, para construir tais dilemas (político, existencial, cultural, social) utiliza de narrativas mais universalmente conhecidas (a história do mundo dividido é explicado pela criação divina, o deus da luz e o deus das trevas, dessa maneira faz eco em religiões de diversas tradições, como o próprio catolicismo) como também mescla características do folclore japonês: Shiva, parece apresentar elementos de Umibozu, criatura grande, de pele escura que amaldiçoava os navios japoneses durante o Período Edo no Japão. A leitura, apesar da densidade narrativa, é fluida e nos deixa curiosas/curiosos, confabulando sobre o passado das personagens. Parte dessa fluidez se deve a constância do formato e da tipografia dos balões de diálogo. O drama que poderia ser construído pela modelagem deste, cabe aos enquadramentos dados por Nagabe nas ilustrações, pelo foco na cena, não sendo raro os focos diretos no rosto de Shiva, também pela densidade do traço sob o papel, a luminosidade presente ou a ausência dela. O texto verbal por vezes deixa a desejar na densidade da explicação dos acontecimentos, contudo, não prejudica a experiência de leitura. Em tempos obscuros, de intolerância, perseguição e ódio, Nagabe nos convida a deixar o maniqueísmo de lado considerar a possibilidade de visões mais complexas, menos reducionistas e mais humanas, que não optem pela ação do extermínio e do genocídio. 

OBS¹: O Brasil, como outros países, enfrenta uma crise sanitária – crise essa multifatorial, iniciada em 2008 –  de dimensões colossais. Nos últimos dias ultrapassamos o número de 100.000 mortes, 100.000 vidas  não levadas em consideração por um governo negacionista e neofascista. Fiquem em casa, se possível, se cuidem e cuidem dos seus.  

OBS²: um grande agradecimento a querida ilustradora Kamilla Chola (@kmilirien) pela ajuda na análise gráfica da obra. Vejam o trabalho dessa artista incrível, também disponível no Youtube.


NOTAS DE RODAPÉ:

¹ Naruto estreou em formato de animação em 2007 pelo Cartoon Network posteriormente sendo exibido na tv aberta.

² No formato anime Dragon Ball estreou em 1986 enquanto Dragon Ball Z em 1989, ambos no Japão. No Brasil, Dragon Ball Z foi exibido pela Rede Globo desde 2001, contendo vários hiatos e continuações, como filmes e OVAS (assim como Naruto) sendo exibido em outras redes.

³ O artigo de Leandro de Araújo Crestani aborda esse debate numa perspectiva histórica: http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/1157. Há outros materiais sobre o assunto, este á apenas um deles. 


Obrigado pela leitura.

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